Hoje Maria Coisa Alguma colocou os sapatos no
canto da porta, e olhou para a sala estranha. Tinham uns móveis meio tortos,
tinha um silêncio meio morto, umas plantas meio murchas, e uma melancolia
daquelas que antigas cantigas de ninar despertam.
Como quem não quer nada, já querendo
desprender-se de tudo para mais tarde, então, poder abraçar o mundo, Maria,
coitada, sozinha como nos outros dias, tentava traduzir suas façanhas
intelectuais nos vocábulos mais prolixos, das sombras mais medonhas queria que
a luz da explicação surgisse. E queria explicitar-se nos símbolos todos, nas
linguagens mais remotas, nos intrínsecos mais latentes das curvas da sua mente.
Mas Maria era fraca, e talvez por reconhecer sua fraqueza fazia-se forte para
não ter que se assistir caindo tão cedo, se segurava nos armários que só ela
pode enxergar. Maria diagnosticou-se sofrendo de uma loucura severa.
Montando e ligando as formas, as letras, ela
quis passar cada gota de si num papel qualquer, mas era impedida. Sua fraqueza
engrandecia aquilo que precisava discorrer, e as palavras mantinham-se apáticas
perante a fraca Maria. Maria era martelo, cabide e vermelho, era carteira sem
dinheiro, sacola da quitanda, cinto arrebentado, caneta perdida, tampa de
manteiga e jogo de damas. Era todas essas coisas e cada uma das palavras,
porque as palavras, malditas ou abençoadas, eram tudo que Maria tinha à
disposição, ao mesmo tempo em que não eram e não podiam ser nada, porque ,tão
coitadas quanto a Maria, estariam sempre fadadas à uma forma que se apresenta
para o externo como conjunta e uniforme, o que, na realidade, não lhes faziam
jus à intenção.
A dificuldade da tradução da cuca para as
mãos era o que fazia a sala da Maria se transformar num monstro de mil cores e
olhares, num desprendimento sem fim, todas as coisas poderiam ter todos os
nomes, e então, sem saber que identidade tomar para si, as coisas todas
derretiam-se sem forma pela casa da Maria. Maria andava pela casa tentando
achar de novo a forma que as coisas haviam perdido, e tirar de uma vez por
todas a falta de delineio daquilo que em sua mente brincava.
Quando se deu conta, Maria também já estava
espalhada pelo chão da casa, porque seu "m" já era "z" e
também era "π", e todas as essências, todas as formas,
embaralhavam-se nos símbolos. Nada mais devia ser coeso, e a casa da Maria se
tornou a casa de tudo e coisa nenhuma, do jeito que tinha que ser, sem ter
tido, para não ter nenhuma explicação.