sexta-feira, 29 de junho de 2012

A casa da Maria.


  Hoje Maria Coisa Alguma colocou os sapatos no canto da porta, e olhou para a sala estranha. Tinham uns móveis meio tortos, tinha um silêncio meio morto, umas plantas meio murchas, e uma melancolia daquelas que antigas cantigas de ninar despertam.
  Como quem não quer nada, já querendo desprender-se de tudo para mais tarde, então, poder abraçar o mundo, Maria, coitada, sozinha como nos outros dias, tentava traduzir suas façanhas intelectuais nos vocábulos mais prolixos, das sombras mais medonhas queria que a luz da explicação surgisse. E queria explicitar-se nos símbolos todos, nas linguagens mais remotas, nos intrínsecos mais latentes das curvas da sua mente. Mas Maria era fraca, e talvez por reconhecer sua fraqueza fazia-se forte para não ter que se assistir caindo tão cedo, se segurava nos armários que só ela pode enxergar. Maria diagnosticou-se sofrendo de uma loucura severa.
  Montando e ligando as formas, as letras, ela quis passar cada gota de si num papel qualquer, mas era impedida. Sua fraqueza engrandecia aquilo que precisava discorrer, e as palavras mantinham-se apáticas perante a fraca Maria. Maria era martelo, cabide e vermelho, era carteira sem dinheiro, sacola da quitanda, cinto arrebentado, caneta perdida, tampa de manteiga e jogo de damas. Era todas essas coisas e cada uma das palavras, porque as palavras, malditas ou abençoadas, eram tudo que Maria tinha à disposição, ao mesmo tempo em que não eram e não podiam ser nada, porque ,tão coitadas quanto a Maria, estariam sempre fadadas à uma forma que se apresenta para o externo como conjunta e uniforme, o que, na realidade, não lhes faziam jus à intenção.
  A dificuldade da tradução da cuca para as mãos era o que fazia a sala da Maria se transformar num monstro de mil cores e olhares, num desprendimento sem fim, todas as coisas poderiam ter todos os nomes, e então, sem saber que identidade tomar para si, as coisas todas derretiam-se sem forma pela casa da Maria. Maria andava pela casa tentando achar de novo a forma que as coisas haviam perdido, e tirar de uma vez por todas a falta de delineio daquilo que em sua mente brincava.
  Quando se deu conta, Maria também já estava espalhada pelo chão da casa, porque seu "m" já era "z" e também era "π", e todas as essências, todas as formas, embaralhavam-se nos símbolos. Nada mais devia ser coeso, e a casa da Maria se tornou a casa de tudo e coisa nenhuma, do jeito que tinha que ser, sem ter tido, para não ter nenhuma explicação.